domingo, novembro 14, 2010

Trem de mistérios.

Saí daquele bar, entrei na rua ao lado e vomitei alguns líquidos que já tinham feito o caminho reverso há pouco. Pus-me de pé, voltei à rua principal e andei até a entrada do metrô. Já era noite, era madrugada e fazia um frio que me doíam as partes. Esperei no banco sentado em frente aos trilhos. As luzes da estação me ofuscavam e o cheiro que saia dos banheiros me lembrava que precisava vomitar.

A estação tremeu, as poucas luzes que estavam no teto piscaram, os trilhos gritaram e o trem chegou. As portas se abriram e eu entrei. Estava vazio, só havia eu, as cadeiras pichadas com alguns dizeres sujos feitos por alguns babacas e as barras que sequer brilhavam de tão sujas e enferrujadas. Sentei na cadeira ao lado da porta que tinha entrado, não conseguia segurar minha cabeça. A viagem seria longa...

Sequer pude colocar minha cabeça na janela, alguém bateu no meu ombro. Era velha, tinha muitas rugas, um cabelo de cores apagadas e amassado e amarrado por um pano preto, vestia roupas bem surradas e sujas e tinha um sorriso amarelo e com poucos dentes.

O que há com você, meu filho? Tanto lugar pra sentar e você me vem sentar aqui, ao meu lado, sua velha? Eu gostei de você, você me lembra meu neto. E daí, você me lembra que eu preciso vomitar. Você tem algum problema, meu filho, eu posso sentir isso, você quer ajuda? Todos temos problemas, velha, e não, eu não preciso da sua ajuda. Deixe-me ajudar, todos precisam de ajuda. Ah, sua velha, não me venha falar de... segurei o vomito nas últimas.

O vagão tremeu e as luzes internas apagaram e acenderam quando passou por uns trilhos enferrujados que gritaram com todo aquele peso. Então, é isso, meu filho, você está só, alguém dever ter feito algo de muito ruim para você, foi isso? Quanto é a consulta, velha, quando você vai me mostrar as cartas e os búzios? É isso, você se sente abandonado. Conte-me meu filho, eu posso lhe ajudar. Que tal isso: A senhora espera eu cair bêbado no corredor do vagão, pega a minha carteira e some daqui, eu acordo depois em cima do meu vômito e finjo que nada aconteceu, você ganha uma grana, e eu, um pouco de sossego. Não preciso do seu dinheiro, não estou aqui para isso. Velha, entenda... Ninguém pode ajudar ninguém, ninguém quer ajudar ninguém, somos todos coiotes esperando pelos cordeiros mais fracos, esperando pelo momento em que eles se ajoelharão e colocarão a cabeça entre as patas e morrerão de fome, estaremos olhando nossas refeições agonizarem, felizes com um sorriso disfarçado e lambendo os beiços. Nem todos são assim, estou aqui para lhe ajudar. Não minta, sua velha, o que você quer é roubar minha carteira. Já disse que não, meu filho, olhe para mim e veja a verdade nos meus olhos.

Mirei os olhos dela com os meus e por aquele momento eu vi a verdade, eu vi a beleza naquelas rugas que marcavam todo o rosto, naqueles cabelos apagados, naqueles sinais de carne espalhados pelo pescoço, naquele sorriso de poucos dentes e naqueles olhos, olhos negros, olhos vivos, mais vivos que eu.
Por que você está aqui, por que está fazendo isso? Por que você precisa de mim. Eu não preciso de ninguém. Nós já falamos sobre isso. Você perdeu alguém, não adianta, eu posso sentir na sua voz. Escondido, por debaixo de toda essa casca suja e podre, está aquele que você um dia foi, você ainda tem um bom coração, só está bem machucado. Você ainda tem a ingenuidade, que foi bastante abusada por pessoas vis, você ainda tem a vida, que quase, por sua causa, foi embora. Eu já não sou jovem, minha velha, me sinto cada vez mais cansado disso tudo, minha vida é esse vagão que roda por esses túneis que um dia foram iluminados, mas que hoje não passam de buracos de topeira, e que, a qualquer hora, pode sair desses trilhos enferrujados e bater no concreto e parar por vez.

O vagão começou a tremer, as luzes da próxima estação já podiam ser vistas, já íamos mais devagar, os trilhos começaram a gritar e ela os acompanhou com um sermão. Não, meu filho, você é um vagão, um vagão que irá parar na próxima estação e que irá abrir todas as suas portas e novas pessoas entrarão, dessas todas, uma será especial, brilhará com um brilho que só você irá enxergar, com uma cor que só você irá ver. E esse brilho e essa cor serão tão fortes que voltarão a iluminar esses infinitos túneis e limparão esses sujos e enferrujados trilhos e esses pichados bancos. Acho que você andou bebendo, minha velha.
O vagão parou.

Hora de ir, velha! Não se esqueça do que lhe disse, meu filho... Levantei e me equilibrei nas duas pernas e sai por aquela porta. Pisei no pátio da nova estação, olhei para uma escada, para a outra, para a máquina de refrigerantes, os bancos de espera, a cabine com o telefone quebrado e o banheiro que não fedia tanto quanto o outro, olhei de volta para aquele vagão e eu me perguntava o que diabos eu havia bebido, ele estava vazio.


Lucas Sales Viana

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